Um encontro com a ancestralidade
Durante visita guiada, estudantes conheceram parte do acervo de 12 mil obras do Mabea
Tweet| Autoria: Adriana Vilar de Menezes | Fotos: Antonio Scarpinetti | Edição de imagem: Alex Calixto
A calourada negra da Unicamp fez um mergulho no Museu Afro Brasil Emanoel Araújo (Mabea) nos dias 16 e 17 de março. Cerca de 160 estudantes visitaram o museu instalado no Parque Ibirapuera, em São Paulo, na primeira “Semana imersiva no Museu Afro Brasil Emanoel Araújo”. Com o objetivo de conhecer o acervo formado majoritariamente por obras de artistas negros, além de obras que retratam a história negra, o evento foi um encontro com a ancestralidade, marcado por força e emoção. Para além do letramento racial, a visita promoveu um aquilombamento, nas palavras da professora Debora Cristina Jeffrey, da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp.
“Estar aqui no Museu Afro Brasil é bastante representativo. Nosso aquilombamento acontece por ser o museu um espaço genuinamente negro, que é destaque no cenário nacional e internacional”, disse a professora na sua fala de boas-vindas. “Estamos aqui neste processo de união, de celebração nesta casa.”
A visita ao Mabea faz parte da programação da Calourada Negra 2023. A novidade é resultado de uma parceria entre o governo do Estado de São Paulo e a Unicamp, por intermédio das pró-reitorias de Graduação (PRG) e Extensão e Cultura (Proec), da Diretoria Executiva de Direitos Humanos (DEDH) e da Comissão Permanente de Vestibulares (Comvest). A proposta partiu do estudante do curso de Ciências Sociais, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Guilherme Renan Domingos Antunes, que é estagiário do Mabea. Sua ideia foi acolhida pela coordenadora do Núcleo de Educação do museu, Siméia de Mello Araújo, que prontamente formalizou a proposta à Unicamp, que por sua vez a aceitou e a viabilizou.
A atividade especial incluiu a viagem de ônibus (ida e volta), a visita guiada para conhecer o acervo do museu, as refeições e uma aula inaugural. Na sexta-feira, houve o lançamento do livro 20 Anos da Lei 10.639/2003 – Trajetos e Possibilidades na Educação das Relações Étnico-Raciais (Editora CRV), organizado pelas pesquisadoras Debora Cristina Jeffrey e Maria de Fátima Garcia.
Na quinta-feira (16/03), após a chegada dos dois ônibus a São Paulo, os cerca de 70 estudantes se organizaram em grupos, para em seguida acompanharem (em grupos separados) um arte-educador na visita guiada e conhecerem parte do acervo de 12 mil obras (8 mil do acervo de longa duração e 4 mil do acervo técnico). Na sexta-feira (17/03), a dinâmica foi a mesma com a participação de 90 estudantes. “O acervo é o lugar para nos encontrarmos com nosso passado, com pessoas negras, para que a gente compreenda também o futuro”, afirma o estudante Guilherme. Entre anônimos e famosos, o visitante vai se deparar com personagens como Pelé e Maria Carolina de Jesus, além de obras de artistas negros, como o próprio fundador que dá nome ao museu, o escultor Emanoel Araújo, e artistas brancos que retrataram a cultura negra como o fotógrafo francês Pierre Verger e o argentino Carybé.
Outras perspectivas
“O museu tem também uma função pedagógica”, afirma Guilherme. “A história do negro não começou na escravidão e não termina nela. Essa história está acontecendo agora com estes estudantes aqui. É um movimento constante, dialético. A branquitude tentou apagar essa história. O museu também é um contraponto à história oficial, ou seja, tem a perspectiva da pessoa negra”, conclui.
Entre os alunos, não havia apenas calouros. Quando os formulários de inscrição foram disponibilizados, não houve restrições. O passeio foi oferecido a todos os alunos interessados. “É isso que a gente está querendo fazer aqui, um pouco desse trabalho de formiguinha, mas também mostrar que nossos passos vieram de muito antes, muito longe”, disse Guilherme.
“Eu achei muito importante [a visita ao museu], principalmente no sentido de conhecer a história. Como eu fui para a área de exatas, o conhecimento que eu tenho sobre meus ancestrais é meio limitado e superficial. Realmente foi uma surpresa ver que temos muito potencial, mesmo nosso povo tendo passado pelo que passou. Com certeza semana que vem eu vou estudar com uma convicção ainda maior de que eu vou vencer. É muito motivador. No meu curso, que tem pouca gente do meu círculo social, isso foi um baque muito grande. Então, esse sentimento de não me sentir pertencendo, de que eu não era bom, era muito grande”, disse João Victor Ribeiro dos Santos, estudante de Matemática Aplicada.
A estudante de Biologia Ayra Mahalla de Souza já tinha em sua família um histórico de valorização da ancestralidade. “Eu fiquei muito feliz de poder estar aqui contemplando as africanidades que a gente tem no Brasil. É uma coisa que minha mãe sempre prezou, como professora de Artes e de Letras, com pós em Matriz Africana. Estar aqui hoje junto com os calouros é muito importante e gratificante pra mim.”
Representatividade
Larissa Adorno Inácio, estudante de Ciências Sociais, tirou fotos ao lado de um painel com texto de Carolina Maria de Jesus, a escritora, compositora e poetisa negra brasileira que teve projeção internacional na década de 1960. “O que Carolina de Jesus fez foi muito impactante na sua época. Enquanto mulher negra, ela é extremamente representativa. É importante quando o conhecimento de uma mulher negra pode ser colocado como o norte de uma pesquisa ou de uma vivência.”
Leonardo Xavier, também do curso de Ciências Sociais, elogiou a programação. “Achei muito boa a iniciativa, especialmente para estes corpos negros que estão entrando agora na Universidade, que é um lugar ainda muito branco, na questão dos conhecimentos mesmo. A gente ter acesso a isso, à nossa memória, a coisas que são também produzidas por pessoas negras, acho isso que faz com que a pessoa entre na Universidade com outra visão.” Leonardo disse que ficou impactado com tudo que viu no museu. “Eu tenho o mesmo sangue dos que passaram pela escravidão e continuam passando, com os diversos atravessamentos sociais, em relação às mais diversas questões sociais no Brasil hoje.”
A educadora May Agontinmé preparou um dos grupos de estudantes antes de entrarem na sala com peças de tortura utilizadas nas pessoas escravizadas. “Existe um fetiche pela dor, algumas pessoas gostam de saber detalhes das torturas. Mas temos que tomar cuidado com isso, porque nós temos que desconstruir narrativas. É importante não esquecer, a gente nunca vai esquecer a dor, mas essa não é nossa única memória.”
Vítor Alves, do curso de Artes Visuais, já havia visitado o museu mais de uma vez e teve oportunidade de conversar com o próprio Emanoel Araújo, que faleceu em 2022. “O próprio Emanoel disse que na história não dá pra falar só da felicidade, que a gente precisava falar também do sofrimento. O museu não é só pra alegria. É como a arte, tem obra que é pra você ter mal-estar. Tem toda uma interpretação antropológica. Essa sala é pra se sentir mal mesmo, pra não esquecer.”
Aula aberta
A aula aberta, que aconteceu logo após a visita ao museu e o almoço, tinha como tema “Das cotas ao museu: memória e representação política negra”. O evento também pretendia celebrar os cinco anos de implementação das cotas étnico-raciais na Unicamp e os 20 anos da Lei 10.639, que instituiu o ensino da história afro-brasileira nas escolas. Recepcionados pela equipe do museu, os estudantes foram motivados a se dedicarem aos estudos. “A Unicamp é uma plataforma pra lançar pessoas de sucesso”, anunciaram.
Para a professora Debora Cristina Jeffrey, trazer os estudantes negros para um processo de reflexão e de amplitude da cultura afro-brasileira é muito importante. “Por outro lado, também acho que isso tem um papel fundamental na luta antirracista, no sentido de compreender que os estudantes negros, negras e negres também têm suas demandas, suas reivindicações, e que estão engajados nisso. A ideia é incentivá-los para que possam seguir ao longo de sua jornada no curso de escolha, que se sintam integrados e acolhidos pela Universidade, à sua dinâmica e à sua rotina.”
Acolhimento
Na opinião da professora, o acolhimento faz muita diferença. Ela não teve isso quando ingressou em 1995. “Há um avanço da Unicamp quando se institucionaliza a calourada negra, isso já é uma reivindicação de muitos anos. Essa calourada já tem um histórico do Núcleo de Consciência Negra, uma iniciativa de estudantes, de alguns docentes, que pensaram nessa efetividade e representatividade, como existe também a recepção para os estudantes indígenas, pensando nessa integração como um todo.”
Para a professora, o anseio dos jovens negros universitários é buscar a sua identidade, ou se ver representado na Universidade como parte integrante da comunidade da Unicamp. “Não esmoreçam. Vivam a Universidade, apesar do racismo estrutural, de todos os desafios. Não se percam. Sejam vocês. Estejam juntos, estejam unidos. A gente pode se unir e fazer essa diferença”, finalizou Debora.
A professora Carolina Cantarino Rodrigues, coordenadora adjunta da Diretoria de Cultura (DCult), agradeceu em nome da pró-reitoria de Extensão e Cultura e da DCult e também lembrou quando ela ingressou na Unicamp em 1995. “Não tive uma recepção como esta. Sequer existiam cotas raciais no Brasil. O cenário era completamente outro. Isso fazia com que naquele momento eu fosse a exceção que confirmava a regra da desigualdade racial no ensino superior. Foram muitas as vezes em que eu era a única pessoa negra na sala de aula. Mas agora não estou mais sozinha na sala de aula. Agora estou com vocês. A sala se tornou mais plural, mais real. Isso se deve à luta dos diversos movimentos negros, em seus mais diversos modos e frentes de atuação. Foi com essa luta que esse cenário se transformou intensamente nos últimos 20 anos. Essa transformação é concreta e ela se expressa aqui hoje nesta sala, com a nossa presença, com a presença de todos vocês estudantes negros da Unicamp e com a presença deste museu. Se nós antes estivemos presentes (tanto na universidade quanto no museu) somente na condição de objetos do conhecimento, agora a qualidade da nossa presença nessas instituições é outra, já que agora podemos afirmar a nossa existência enquanto sujeitas e sujeitos criadores, produtores de conhecimento, de arte, de cultura, de pensamento. O Museu Afro Brasil me comove. Podemos sentir que essa força ancestral habita cada uma e cada um de nós. E assim nós nos fortalecemos, coletivamente, mutuamente, porque esse patrimônio cultural é nosso.”
Sávio Machado Cavalcante, professor de Sociologia do IFCH e assessor da Pró-Reitoria de Graduação (PRG), agradeceu ao Guilherme e lembrou que o evento era resultado de um esforço coletivo. “Vejo este momento, hoje, como muito importante. Vocês vão continuar essa luta. Fico muito feliz de fazer parte dessa história, de alguma maneira, e de ver o interesse de vocês, com toda essa energia. Muita sorte pra vocês nessa trajetória. Parabéns.”
Segundo a coordenadora do Núcleo de Educação do Mabea, essa foi a primeira parceria do museu com uma universidade pública. “Esse é um projeto que se deu de forma muito bem-sucedida, haja visto o encontro lindo de hoje. Queremos transformar isso em um programa de diálogo com algumas instituições.” Siméia disse que o público universitário, especialmente os estudantes cotistas, é um público com que o museu tem muito interesse em dialogar. “Aprendemos e ensinamos juntos.” De acordo com a coordenadora, a Lei 10.639 norteia as atividades do Núcleo Educação do Mabea.
O museu
Fundado em 2004 pelo escultor baiano Emanoel Araújo – um ano depois da Lei 10.639, que instituiu o ensino sobre a história afro-brasileira nas escolas –, o Mabea fica instalado no Parque Ibirapuera, em São Paulo, no Pavilhão Padre Manoel da Nóbrega, que recebeu a segunda Bienal Internacional de Arte de São Paulo. O prédio é de 1953. Emanoel começou o museu com suas 1.100 obras. Hoje há na instituição 12 mil obras e o museu está integrado à Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo. O artista faleceu em 2022.
Assista ao vídeo produzido pela equipe de Comunicação Proec:
Notícia originalmente publicada no site Portal Unicamp.